Por que o estresse bancário nos Estados Unidos dessa vez é diferente

Folha de São Paulo, 21 março 2023

Por Quê? 24 março 2023

Nas duas semanas passadas, ocorreram as falências de três bancos nos Estados Unidos: Silicon Valley Bank (SVB), Signature Bank e Silvergate Bank. O SVB e o Signature corresponderam, respectivamente, à segunda e à terceira maiores falências bancárias da história.

Outros bancos como o First Republic e, na Europa, o Credit Suisse não entraram em colapso, mas atravessaram forte instabilidade. Ao fim da semana passada, bancos nos Estados Unidos, na Europa e no Japão haviam perdido em conjunto no mês um total de quase US$ 500 bilhões em valor de mercado. Os esforços de autoridades públicas para conter o pânico e estabilizar o sistema foram apenas parcialmente exitosos.

Vem a questão: está o sistema bancário dos Estados Unidos à beira de um precipício como o de 2008? Seriam as duas últimas semanas o prenúncio de uma nova crise sistêmica?

Desde o ano passado assiste-se ao curso de três mudanças significativas no regime macroeconômico das economias avançadas em relação ao período posterior à crise financeira global. Primeiro, já em 2021, a possível insuficiência crônica de demanda agregada da década anterior deu lugar a choques de restrições no lado da oferta e à subida da inflação. Como consequência, a era de liquidez abundante e barata provida por bancos centrais deu lugar a juros mais altos e ao encolhimento de seus balanços em 2022. Finalmente, como resultado dessas mudanças, viu-se forte desvalorização de ativos financeiros no ano passado e receios quanto a múltiplas possibilidades de choques em 2023. Estariam tais choques subjacentes ao estresse bancário das últimas duas semanas?

Há vários motivos para diferenciar a atual situação daquela prévia à crise financeira global. Antes de tudo, na esteira da crise financeira e das reformas do sistema regulatório, incluindo a legislação Dodd-Frank, o sistema bancário norte-americano aumentou significativamente seu nível de capitalização. Os bancos maiores passaram a estar obrigados a manter proporções mais altas de capital acionário e reservas em relação aos ativos em carteira. Os grandes bancos também se submetem a testes de estresse todo ano. Tais testes frequentemente incluem verificar o impacto de grandes oscilações nas taxas de juros em suas finanças.

A liquidez do sistema também aumentou, porque os bancos agora são obrigados a manter uma quantidade suficiente de seus ativos que possam ser rapidamente convertidos em dinheiro para atender às saídas líquidas de caixa em um ambiente de estresse. Esse requisito de cobertura de liquidez é particularmente rigoroso no caso de bancos com mais de US$ 250 bilhões em ativos.

No lado dos ativos bancários, também diferentemente do período pré-crise financeira global, não há um quadro de deterioração geral, como foi o caso do nexo com ativos imobiliários podres antes de 2008-09. O sistema financeiro não vem sofrendo com problemas significativos de crédito, pois a qualidade do crédito para empresas e famílias permaneceu alta em geral durante a pandemia e outros choques no passado recente. Os governos aumentaram suas dívidas e os bancos centrais inflaram seus balanços para transferir dinheiro para as economias, com o setor privado aproveitando a oportunidade para alongar dívidas com taxas baixas de juros.

A rigor, uma vulnerabilidade no lado dos ativos bancários diz respeito a títulos públicos de renda fixa que os bancos mantenham em carteira num momento em que as taxas de juros estejam aumentando. Caso tais títulos de baixo risco possam ser mantidos até seu vencimento, tudo bem. Mas aparece uma perda se antes disso os bancos precisarem vendê-los ou reconhecer seu valor de mercado. Isto pode ser chamado de “risco de descasamento de taxas de juros” (duration risk) ou  “risco de carrego” (carry trade risk). Estima-se que os bancos dos Estados Unidos tiveram mais de US$ 620 bilhões de perdas via marcação a mercado no ano passado.

Então, pode-se perguntar, de onde vieram as falências e a desconfiança em relação a bancos, particularmente os bancos regionais e comunitários nos Estados Unidos? As recentes falências bancárias estão sinalizando mais corridas e falências bancárias em andamento?

As instituições falidas não estavam entre aquelas cobertas pelo regime prudencial apertado. Assim como outros atualmente sob estresse. Mudanças legais em 2018 tornaram esse padrão prudencial não obrigatório para bancos com menos de US$ 250 bilhões em carteira.

O SBV era um banco de tamanho médio com forte concentração de ativos sob a forma de títulos públicos de renda fixa e, portanto, vulnerável ao “risco de descasamento” acima mencionado. Além disso, quase todos os seus depositantes tinham depósitos muito acima do limite de seguro dado pela Corporação Federal de Seguros de Depósitos (FDIC em inglês), que vai até US$ 250 mil. Assim, entende-se a velocidade de fuga de depositantes e a queda súbita após o reconhecimento de perdas com títulos de renda fixa a serem vendidos pelo banco.

A resposta das autoridades nos Estados Unidos no domingo após a quebra do SBV foi significativa, tanto na extensão do seguro de depósitos – sem salvar acionistas e credores – quanto na linha de crédito por um ano criada para ajudar outros bancos a reter em carteira títulos públicos e evitar a repetição do que se passou com o SBV. Há quem chame isso até de um novo “afrouxamento quantitativo” em paralelo com o “aperto quantitativo” em andamento.

A ver se a transferência de depósitos desses bancos regionais e comunitários para grandes bancos ou para fundos do mercado monetário vai arrefecer. Dá para dizer que o estresse bancário até aqui não foi prenúncio de colapso, mas a mudança de regime macroeconômico trará novos choques. Atenção também deverá ser dedicada a instituições financeiras não-bancárias que substituíram em parte a intermediação bancária desde a crise financeira global.

Na Europa, o problema bancário esteve razoavelmente circunscrito ao banco suíço Credit Suisse, cuja saga até sua aquisição pelo UBS noticiada domingo já se desdobrava há algum tempo, sendo agravada pelos acontecimentos no outro lado do Atlântico. Por isso, a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, quando anunciou um aumento de 50 pontos básicos na taxa de juros na semana passada, pôde se dar ao luxo de observar a ausência de fragilidades na zona do euro como aquelas no lado americano. Pôde inclusive dizer que os objetivos quanto a inflação e a estabilidade financeira lá são objeto de instrumentos distintos próprios.

Domingo também foi anunciado um acordo entre o Federal Reserve (Fed), o Banco Central Europeu, o Banco da Inglaterra, o Banco Nacional Suíço, o Banco do Canadá e o Banco do Japão de mudar para diários, desde ontem, os leilões semanais de dólares. As linhas diárias de swap deverão funcionar pelo menos até o final de abril, em um esforço para “aliviar as tensões nos mercados globais de financiamento”.

Voltando aos Estados Unidos, dá para dizer que o dilema do Fed entre combater inflação e assegurar estabilidade financeira ficou mais apertado, com “dominância financeira” caso os juros sejam mantidos abaixo do que a política contra a inflação recomendaria. Apesar do otimismo de que o estresse no sistema financeiro será contido, um endurecimento de condições financeiras – em ações e crédito – já está ocorrendo.

A rigor, é cedo para dizer que outros receios de mercado e o desaparecimento de liquidez para outros bancos ficaram para trás. Ontem, por exemplo, a liquidez não havia ainda retornado ao Banco First Republic e suas ações desabaram. Há um clamor por extensão do que foi feito com o SVB em termos de cobertura de seguros de depósitos.

Na reunião do Comitê de Política Monetária do Fed ocorrendo hoje e amanhã, pode-se descartar a subida em 50 pontos básicos que seu presidente Jerome Powell deu a entender seria o caso na terça-feira que precedeu a falência do SVB. Porém, entre dar um tempo para ver, mantendo os juros onde estão, e elevar em apenas 25 pontos básicos, aposto que a opção será essa segunda.

 

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

Get the latest articles directly into your mail box!

You can choose to receive the latest articles either in English, Portuguese or both. Please note:  the confirmation email you will receive may arrive in your Spam or Promotion folder.

Lists*

Loading
Facebook
Twitter
LinkedIn