Ambiente Macroeconômico nos Países Avançados Atravessa Mudanças

Poder 360, 31 dezembro 2022

Bancos Centrais terão que lidar com trilema entre inflação, empregos e estabilidade financeira

Neste ano, assistimos o curso de três mudanças significativas no ambiente macroeconômico das economias avançadas em relação ao período posterior à crise financeira global de 2008. Primeiro, já em 2021, a possível insuficiência crônica de demanda agregada de antes deu lugar a choques de restrições no lado da oferta e à subida inflacionária. Como consequência, a era de liquidez abundante e barata provida por bancos centrais deu lugar a juros mais altos e a apertos na liquidez neste ano. Finalmente, como resultado das mudanças anteriores, viu-se forte desvalorização de ativos financeiros e receios quanto a múltiplas possibilidades de choques em 2023.

Nos anos que se seguiram à crise financeira global, atribuiu-se a responsabilidade pelo crescimento econômico lento a uma insuficiência crônica de demanda agregada. Múltiplas hipóteses foram estabelecidas acerca de uma possível tendência de estagnação secular presente nas economias avançadas: ressacas da crise financeira, concentração da renda, fim das ondas tecnológicas das décadas anteriores, mudanças demográficas e outras.

O longo período de baixas taxas de juros, acompanhado por inundação de liquidez por bancos centrais através de seus programas de “afrouxamento quantitativo” (compras de títulos de dívida pública, hipotecas e, na zona do euro, ativos privados), além de reforçarem a estabilidade financeira, compensaram a relativamente baixa utilização de políticas fiscais expansivas. Por outro lado, o sinal da política fiscal mudou significativamente com o apoio de emergência distribuído pelos governos a famílias e empresas durante a pandemia.

Ao mesmo tempo em que choques passaram a colocar a oferta em vez da demanda como dificuldade. Além dos interrompimentos de cadeias de valor durante a pandemia, viu-se uma retração na participação da população na oferta de trabalho, especialmente nos Estados Unidos. Adicionalmente, a invasão da Ucrânia pela Rússia este ano disparou choques de oferta e de preços de alimentos e energia.

Além do descompasso entre restrições de oferta e a demanda fortalecida pelas transferências governamentais, a percepção de riscos geopolíticos e a maior frequência de fenômenos climáticos adversos estão levando empresas a trocar em parte eficiência por resiliência, apesar dos custos desta. Dependendo da extensão em que isso venha a ocorrer, cadeias de suprimentos menos responsivas em termos de quantidade e mais responsivas em termos de preço tendem a virar a norma.

A inflação que adveio dessa mudança no contraponto entre oferta e demanda explica uma segunda mudança profunda nesse ano, qual seja, o fim da era de liquidez ilimitada provida por bancos centrais. Durante anos, os bancos centrais das principais economias responderam a praticamente qualquer sinal de fraqueza econômica ou volatilidade de mercados financeiros mediante colocação de mais dinheiro.

Mas à medida em que os bancos centrais estenderam o que deveria ser uma intervenção por tempo limitado, alguns danos colaterais foram causados. Mercados financeiros carregados de liquidez se dissociaram da economia real. Além disso, ficaram “mimados”, passando a exibir acessos de raiva ou birra (“tantrum”), com reações negativas até a meros indícios de redução no apoio do banco central.

Foi assim em 2013, nos Estados Unidos, quando o presidente do Fed na época, Ben Bernanke, anunciou que a instituição começaria a estudar o fim do “afrouxamento quantitativo” e acabou revertendo esse curso seis semanas depois. Também ocorreu no quarto trimestre de 2018, quando Jeremy Powell, então já presidente, teve que fazer uma reviravolta muito embaraçosa de seu leve “aperto quantitativo” porque os mercados ficaram muito instáveis.

Tudo isso mudou com o aumento da inflação nos Estados Unidos e na Europa. O diagnóstico da inflação como “transitória” deu lugar a promessas de “aperto quantitativo” para valer e de elevação de taxas de juros. A rigor, o Fed continuou a injetar liquidez na economia até março de 2022, passando a encolher gradualmente seu balanço a partir de junho. Também finalmente começou a modestamente elevar as taxas básicas de juros, mudando depois para uma série de aumentos mais acentuados, incluindo um recorde de quatro aumentos sucessivos de 0,75 pontos percentuais entre junho e novembro e o fechamento do ano com mais 0,50 pontos percentuais. Deve elevar a taxa básica em 0,25 pontos percentuais mais duas ou três vezes nos primeiros meses de 2023 e deixá-la lá por algum tempo. O Banco Central Europeu está se movendo numa mesma direção, ainda que com menor intensidade.

As duas mudanças levaram à terceira, a saber, uma percepção de crescente fragilidade em mercados financeiros. 2022 foi um ano de desvalorização de ações e de títulos de renda fixa: o ano financeiro terminou ontem com perdas acima de US$ 30 trilhões em ações e títulos de renda fixa. A desaceleração macroeconômica em 2023 levará a menor rendimento de ativos em geral.

Sabe-se do endividamento corporativo acrescido nos anos de baixos juros e abundante liquidez e, embora analistas sugiram não haver vulnerabilidade generalizada em termos de descompassos de prazos e taxas entre ativos e passivos, reconhece-se haver múltiplos lugares onde algum repentino desaparecimento de liquidez pode gerar ajustes dramáticos e insolvências.

Na era de dinheiro fácil ocorreu uma metamorfose nos fluxos financeiros, com uma parte significativa da atividade financeira global migrando de bancos altamente regulamentados após a crise financeira global para entidades menos compreendidas e regulamentadas, como gestores de ativos, fundos de private equity e fundos de hedge,. Instituições financeiras não-bancárias substituíram bancos na intermediação financeira. Esses intermediários não são propensos a manter forte resiliência contra mudanças súbitas e acentuadas no custo dos empréstimos ou no acesso ao financiamento.

Exemplo disso foi o quase colapso financeiro em outubro no Reino Unido. Depois que o governo então recém-empossado de Liz Truss anunciou um plano de grandes cortes de impostos não financiados, os rendimentos dos títulos do governo dispararam, pegando de surpresa alguns dos fundos de pensão altamente alavancados do país. Não fosse pela intervenção de emergência do Banco da Inglaterra, o recuo na proposta do governo de Truss e sua eventual queda, a venda forçada de títulos pelos fundos de pensão poderia ter se transformado em uma grande crise financeira.

A fragilidade do sistema financeiro traz implicações para o trabalho dos bancos centrais. Em vez de encararem apenas seu dilema básico –reduzir a inflação ou segurar o crescimento econômico e o emprego – passam a enfrentar um trilema: reduzir a inflação, manter crescimento e empregos ou garantir a estabilidade financeira. Eventualmente bancos centrais ver-se-ão obrigados a tentar conciliar seus “apertos quantitativos” e elevação de juros com intervenções de provisão de liquidez em pontos focais do sistema.

As três grandes mudanças de ambiente macroeconômico permitem antever uma desaceleração no crescimento das economias avançadas, cuja intensidade que dependerá da resistência da inflação e de mercados financeiros.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp

 

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