Por que seria bom mostrar obras de reforço do teto de gastos públicos + É possível conciliar responsabilidades social e fiscal, diz Otaviano Canuto

 

Por que seria bom mostrar obras de reforço do teto de gastos públicos

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO  17.ago.2020 às 23h15

Quanto mais demorar a retomada de agenda de reformas estruturais, maior será a vulnerabilidade do teto

Em seu discurso de posse no ano passado, o ministro Paulo Guedes falou da necessidade de construir as paredes necessárias para segurar o teto dos gastos. Domingo passado a Folha de S. Paulo trouxe um manifesto de um grupo de economistas propondo um rebaixamento do piso de gastos para evitar o colapso do teto. Por quê?

Sinais recentes nos mercados financeiros sugerem uma mudança na atenção ao panorama de evolução das contas públicas; desde o início do mês ruídos acerca de discussões no governo sobre alguma flexibilização do teto de gastos vêm se traduzindo em pressões de alta nos juros de longo prazo e na taxa de câmbio. Na semana passada, mesmo com o pronunciamento do presidente Bolsonaro em defesa do teto na quarta-feira, as taxas futuras de juros dos contratos de Depósito Interfinanceiro (DI) subiram de patamar. A taxa DI F27 subiu de 6,1% para 6,8% entre 3 e 14 de agosto. No mercado cambial, vários analistas explicaram a resistência do preço do dólar no mercado brasileiro, enquanto se desvaloriza em relação a outras moedas do mundo, pela contaminação do risco fiscal.

Até este mês, em 2020, a subida vertiginosa do déficit público, por conta das políticas públicas necessárias para mitigar a catástrofe da covid-19 e da diminuição na receita tributária, foi recebida como extraordinária e reversível por credores, sem gerar forte impacto sobre o espectro temporal de taxas de juros. Assim como no resto do mundo, a combinação de um declínio no PIB com déficit público mais alto está elevando a dívida pública como proporção do PIB do país. O governo vem recorrendo à emissão de títulos de dívida mais curtos e ao espaço disponível em sua conta única no Banco Central para cobrir necessidades de financiamento este ano sem pressionar taxas de juros. A perspectiva de retorno à trajetória de ajuste fiscal gradual, contudo, é o pilar para tal.

Um ponto importante a observar é o fato de que, no Brasil, o ajustamento gradual das contas públicas iniciado desde a aprovação do teto de gastos ainda não havia trazido a dívida pública para patamares confortáveis. A tarefa estará aumentada ao final do período excepcional de emergência que o país ainda está atravessando. Por outro lado, na hipótese de retorno e vigência do teto de gastos, a dívida pública como proporção do PIB atingiria um ponto máximo mais tarde do que seria o caso nos tempos pré-Covid, mas o faria. A confiança em tal trajetória tem estado subjacente ao declínio de juros reais na economia brasileira no passado recente.

Ora, a confiança supõe a continuidade de reformas estruturais que tornem o teto sustentável – as paredes mencionadas pelo ministro Guedes em seu discurso inicial. A reforma da Previdência foi um passo importante, mas não suficiente.

Há outras duas áreas, além da Previdência, frequentemente apontadas como candidatas para o governo cortar gastos obrigatórios que hoje tomam cerca de 95% do orçamento federal e, assim, encontrar espaço para atender necessidades de gastos discricionários sem derrubar o teto: os prêmios do rendimento salarial no setor público em relação a ocupações comparáveis no setor privado e a ampla gama de isenções e subsídios tarifários.  Essas áreas foram sugeridas, por exemplo, no relatório “Um ajuste justo” do Banco Mundial, divulgado em 2017. Com efeito, a “reforma administrativa” anunciada pelo ministro Guedes, mas não enviada ao Congresso, claramente focalizaria o prêmio salarial.

Em janeiro deste ano, chamamos atenção para o risco de complacência governamental, depois da reforma previdenciária, quanto à agenda de reformas estruturais que ajudaria no tratamento da obesidade fiscal e da anemia de produtividade, a dupla doença que vem atacando a economia brasileira há décadas. A pandemia e a decorrente emergência suspenderam a ação. Contudo, quanto mais demorar a retomada da agenda, maior será a vulnerabilidade do teto diante das compreensíveis pressões por mais gastos discricionários e a correspondente pressão sobre juros e câmbio.

O manifesto de economistas citado no início sugere levar adiante propostas de emendas constitucionais já em tramitação no Senado para a instalação de “gatilhos” que contenham gastos obrigatórios do orçamento já em 2021. Entre eles pode-se até estabelecer um “limite prudencial”, ou seja, um patamar mínimo para as despesas discricionárias a partir do qual a contenção ou redução de gastos obrigatórios possa ser adotada.

É preciso ter pressa para mostrar obras – para além de promessas – de reforço do teto fiscal


É possível conciliar responsabilidades social e fiscal, diz Otaviano Canuto

PODER 360,
22.ago.2020 (sábado) – 6h00

Renda básica é bem-vinda

Mas teto de gastos continua

O mês de agosto vem sendo marcado por oscilações na percepção de riscos de quebra do teto de gastos públicos a partir do ano que vem, ou seja, ao fim do regime extraordinário em vigor durante a crise da covid-19. Não por acaso, assistiu-se a idas e vindas nas taxas longas de juros, bem como na taxa de câmbio.

Nesta semana tivemos até manifestos de economistas a favor e contra a continuidade do teto de gastos. Como assinei o manifesto a favor, perguntaram-me se isso era conciliável com outra chamada que fiz aqui no Poder 360, junto com Pedro Henrique de Cristo, de que um programa de renda básica –para além do Bolsa Família– fosse um legado da crise da covid-19.

Minha resposta é simples: é conciliável, sim!

É fato que tem uma encruzilhada fiscal no caminho do Brasil depois da epidemia. O ritmo de reformas estruturais permitindo a contenção de gastos obrigatórios não tem sido rápido o suficiente, mesmo com a reforma da Previdência, para evitar o encolhimento do espaço orçamentário disponível para gastos discricionários essenciais. A ponto de alguns já considerarem inevitável a escolha entre desrespeitar o teto ou o país parar. Por outro lado, como realcei aqui, respeitar o teto nos anos a seguir pode muito bem acabar fazendo a diferença em termos da definição de qual trajetória a dívida pública e o crescimento econômico tomarão no Brasil. Como então conciliar com o clamor por um programa de renda básica?

Um relatório produzido por Gabriel Barros, do BTG Pactual, datado de ontem (can we conciliate social and fiscal responsibility?), faz as contas corroborando a possibilidade. Ele mostra que, a não ser pelos riscos de gastos militares e de programas de investimento público ambiciosos, dá para respeitar o teto de gastos até 2022… ao mesmo tempo em que se poderia reformular a rede de proteção social, ampliando e aumentando seu impacto, de maneira compatível. O segredo está em integrar políticas sociais em um único programa, com maior eficiência por conta da substituição de programas atuais por outro mais socialmente progressivo.

Vejamos exemplos de contas mencionadas no relatório:

Uma lista de programas de transferência de renda –abono salarial, salário família, salário maternidade, Bolsa Família, auxílio reclusão, aposentadorias rurais, seguro desemprego, BPC (benefício de prestação continuada) –totaliza perto de R$ 263 bilhões neste ano. Sua fusão permitiria um programa de “renda mínima” de R$ 340 mensais para 64 milhões de beneficiários. Além disso, eliminaria a sobreposição cumulativa desses benefícios para um mesmo grupo familiar.

Gabriel Barros também explora outras possibilidades menos ambiciosas, tais como deixar BPC e benefícios rurais fora da fusão. Ter-se-ia então um potencial entre R$ 90 bilhões e R$ 100 bilhões. Uma série de benefícios que pagam mais de R$ 1.000 mensais a um pequeno número de beneficiários seria trocada por um benefício médio menor, mas alcançando um número bem maior de pessoas.

O relatório nos recorda como o Banco Mundial já chegou a mostrar quão significativo é, no Brasil, o pagamento de vários benefícios a uma mesma família: 38% das famílias que recebem o abono salarial também são destinatários do salário família; 24% dos beneficiários da BPC também recebem Bolsa Família; 33% e 21% dos receptores de Bolsa Família, respectivamente, também o fazem nos casos de salário família e auxílio desemprego. O ponto é o de que a unificação de programas permitiria menor incidência de fraudes e benefícios concedidos incorretamente ou de modo desigual.     

Como já realçamos aqui, a extensão do Cadastro Único para cerca de 65 milhões de brasileiros que vêm recebendo o auxílio emergencial –responsável por um decréscimo do PIB menor que o esperado para o primeiro semestre– foi um dos legados da crise da covid-19. Poderá facilitar a busca de ampliação do escopo da rede de proteção social, assim como servir de base futura para tomada de decisões e formulação de políticas públicas. Como muitas vezes ouvi em meus tempos de Banco Mundial, “é importante conhecer o pobre pelo nome!”. Poder-se-á evoluir de inúmeros documentos para um registro pessoal unificado, inclusive para a recepção de benefícios.

É claro que continua prioritária, a nosso ver, a busca de reformas que viabilizem a mudança na trajetória ascendente de gastos obrigatórios e, assim, abrir espaço para despesas com investimentos e de proteção social sem romper o caminho de ajuste fiscal. Cabe lembrar que, mesmo supondo condições de crescimento potencial brasileiro em torno de 2% ao ano, o teto de gastos implica um ajuste gradual no superávit primário em torno de 0,5 pontos percentuais do PIB ao ano.

Da mesma forma, o tratamento da “obesidade do setor público” brasileiro exigirá a busca de melhor impacto e custo-eficácia do gasto público. O ponto aqui é que, para ser mais responsável socialmente, não necessariamente precisaremos pôr em risco a responsabilidade fiscal.

 

Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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