Em seus 75 anos de história, as instituições nascidas em Bretton Woods, muitas vezes referidas como irmãs gêmeas, passaram por adaptação e transformação para responder à evolução da economia global e aos desafios por esta colocada. Mais recentemente, três mudanças na ordem internacional trouxeram um novo conjunto de desafios: o surgimento de novos polos geoeconômicos; a predominância de políticas nacionalistas sobre o multilateralismo; e a fragmentação do sistema de instituições plurinacionais.
Instituições gêmeas em mudança
O FMI foi estabelecido para – e continua a ter como função essencial – preservar a estabilidade monetária internacional. Suas funções e instrumentos, no entanto, mudaram quando o sistema monetário internacional abandonou o regime cambial fixo e ajustável em 1971-1973, a mobilidade internacional do capital se expandiu e o FMI tornou-se um observador da economia mundial, um administrador de crises e gestor dos programas de resgate dos países que recorrem aos recursos da instituição.
O Banco Mundial foi criado para financiar e fornecer apoio técnico para projetos de investimento na reconstrução de países devastados pela Segunda Guerra Mundial e para países em desenvolvimento. Com o tempo, com a reclassificação (“graduação”) de países de renda mais alta, passando de receptores a doadores, o Grupo Banco Mundial ampliou seu foco na intermediação de recursos concessionais – em condições favoráveis – para as economias de baixa renda. Em termos relativos, seu tamanho encolheu como proporção dos fluxos globais de capital privado para as economias em desenvolvimento.
As instituições gêmeas, além de serem fontes de recursos para países com déficits de curto prazo e/ou necessidades de financiamento de longo prazo, em conjunto com bancos regionais de desenvolvimento, também começaram a desempenhar papel na assessoria quanto a políticas, como catalisadores de fluxos financeiros e investimento privado, como gestores de conhecimento e coletores de dados, bem como na advocacia e apoio para a oferta de bens públicos globais.
As gêmeas receberam a companhia de outra instituição do pós-guerra: o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, ampliado e reconhecido como Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, que oferece uma estrutura para a promoção do livre comércio baseado em regras e mecanismos de resolução de disputas no âmbito multilateral.
Mais recentemente, três mudanças na ordem internacional trouxeram um novo conjunto de desafios: o surgimento de novos polos geoeconômicos; a predominância de políticas nacionalistas sobre o multilateralismo; e a fragmentação do sistema de instituições plurinacionais.
Novos polos geoeconômicos
O surgimento de novos polos geoeconômicos levou à contestação da estrutura de governança das instituições gêmeas. Como principais contribuintes de recursos financeiros para elas, membros/doadores norte-americanos, europeus e japoneses mantiveram o poder, enquanto a abertura econômica da China e a queda do império soviético contribuíram para tornar tais instituições efetivamente globais.
A globalização levou a um forte crescimento e convergência da renda per capita nas economias emergentes, particularmente na China e em outros países asiáticos. Também levou a um aprofundamento da interdependência em termos de comércio, fluxos de capital privado e exposição a eventos sistêmicos globais. Com essa interdependência e o estreitamento da lacuna entre essas economias e doadores/membros majoritários, a reivindicação de mudar a estrutura de governança das gêmeas. A percepção de que as decisões tomadas nessas instituições inevitavelmente refletiriam o equilíbrio de poder vigente em sua governança foi reforçada pela resistência dos membros majoritários a mudanças significativas propostas em termos de estruturas de voto e capital. A percepção de “dois pesos, duas medidas” em operações do FMI durante as crises asiática – inflexível sobre os ajustes fiscais considerados desnecessários – e da zona euro – quando o FMI acolheu pressão europeia para financiar a Grécia, apesar da óbvia necessidade de reestruturar sua dívida pública – também foi fortemente sentida.
Iniciativas para desenvolver alternativas às gêmeas já ocorreram na sequência da crise asiática. A preservação de taxas de câmbio desvalorizadas por alguns países da região, além de reforçar seu crescimento industrial liderado por exportações, também permitiu continuados superávits em conta corrente e a acumulação de reservas internacionais como mecanismo de auto-seguro. Na mesma linha, a iniciativa de Chiang Mai visava estabelecer um arranjo para o compartilhamento de reservas externas com vistas ao apoio mútuo de balanços de pagamentos entre os países da região.
A criação do Novo Banco de Desenvolvimento e um acordo sobre a partilha de reservas cambiais entre os BRICS, assim como do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura sob a liderança da China, podem ser vistas como uma reação ao que se percebe como limites para mudança na governança e no tamanho das instituições de Bretton Woods. Na mesma linha, outras instituições regionais lideradas por economias emergentes – o Banco Islâmico de Desenvolvimento, a Corporação Andina de Fomento e o Banco de Desenvolvimento Euroasiático – realizaram aumentos de capital.
Pressões nacionalistas em detrimento do multilateralismo
Outra fonte de desafios vem do recente predomínio de pressões nacionalistas em detrimento do multilateralismo entre principais doadores/membros das instituições. A opção americana no governo Trump pelo bilateralismo e por guerras comerciais, em lugar das negociações comerciais plurilaterais da era Obama, bem como o Brexit e o crescimento de movimentos anti-imigração na Europa, parecem manifestar uma sensação de que progressos nas economias emergentes têm se dado em parte à custa de empregos em setores tradicionais para parte da população desses países.
Isso alimentou tensões pré-existentes em relação à ajuda ao desenvolvimento por meio das instituições de Bretton Woods. No caso do FMI, apesar da aprovação pelo congresso norte-americano em 2015 do aumento de cotas aprovado em 2010, a proporção dos recursos acionáveis pelo FMI sobre o volume de passivos externos na economia global vem caindo.
No caso do Banco Mundial, não por acaso o volume de recursos prometidos à AID (IDA) por países doadores a cada três anos, para que esta possa utilizar em operações concessionais (a taxas muito favoráveis) para países de baixa renda, foi bem menor na rodada mais recente. Este fato foi escondido pela autorização à IDA para emitir títulos de dívida e reutilizar os reembolsos de empréstimos passados, o que aumentou na aparência seu volume total de recursos. Por seu turno, o acordo de aumento de capital do ano passado para o BIRD e a CFI do Grupo Banco Mundial, além de ser reduzido o suficiente para não alterar significativamente a distribuição de poder de voto entre países membros, também incorporou tetos limitando os empréstimos futuros a países de renda média mais alta, como China, Brasil, México e outros, assim que o acordo de capitalização for implementado.
Tal limitação tende a trazer duas consequências: por um lado, as operações com esses países são uma fonte muito especial de aprendizado passível de transferência para outros países clientes. Adicionalmente, a capacidade do BIRD e da CFI de alavancar seu capital através da emissão de títulos de dívida usufruirá menos de ter em seu portfólio a exposição a países que oferecem um cenário melhor em termos de rendimento e risco. O relativo declínio no peso do Banco Mundial tende a continuar.
Fragmentação do sistema institucional plurinacional
A fragmentação do sistema institucional plurinacional é uma terceira fonte de dificuldades para as instituições gêmeas, em grande parte como resultado dos dois desafios anteriores. Além do surgimento de vários novos bancos de desenvolvimento, elevou-se o peso dos fundos “verticais” e a concorrência de outras fontes de financiamento e assistência por parte de ONGs, fundações e investidores privados tem-se fortalecido.
A proliferação de instituições e o reforço de fontes de recursos paralelas às gêmeas de Bretton Woods lhes colocaram problemas em termos de alocação de recursos, coordenação e consistência com os requisitos de condicionalidade que acompanham suas operações. Este desafio foi agravado pela expansão do financiamento bilateral por países emergentes, especialmente pela China.
Mudar e se adaptar para funcionar
Pode-se esperar a continuidade dos três desafios futuro próximo. Basta lembrar que o futuro presidente do Banco Mundial, David Malpass, durante discurso no Congresso dos EUA no ano passado sobre a recapitalização do Banco, propôs a reclassificação (“graduação”) da China e outros países de renda média alta no BIRD como pré-condição para aumento de capital da instituição. O acordo final estabelecido no conjunto de países membros inclui os tetos relativos para empréstimos a que nos referimos, com forte apoio de outros majoritários, como França, Japão e Reino Unido. A atenção se voltará agora para sua implementação. O recente conflito entre a China e os Estados Unidos em torno da reunião anual do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que deveria ter ocorrido na China no mês passado e foi cancelada na véspera pelo BID, talvez seja o prenúncio de outras batalhas internas que poderão estar presentes nessas instituições multilaterais no futuro próximo. Outro ponto de interrogação estará no cumprimento dos compromissos contidos no acordo de aumento de capital do Banco Mundial sobre as operações relativas às mudanças climáticas.
Entre os bancos de desenvolvimento, embora tenha-se observado exemplos de cooperação e co-financiamento em alguns projetos específicos, a busca de harmonização e convergência de padrões tende a ser dificultada pela atual fraqueza do multilateralismo.
As dificuldades em termos de volume de recursos ao alcance das irmãs gêmeas tendem a continuar. Terão de se transformar e adaptar para operar em um contexto de fragmentação institucional, para continuar cumprindo suas missões.
A ser apresentado aqui: 7ème édition des Dialogues Stratégiques : Crise du multilatéralisme et Nouvelle géopolitique de la Corne de l’Afrique, HEC Center for Geopolitics et Policy Center for the New South, Paris, 10 April 2019
Otaviano Canuto é diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington, senior fellow do Policy Center for the New South e senior fellow não residente do Brookings Institute. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.