Renda básica e integração das favelas deveriam ser legados da covid-19

 

Poder 360 – 9 maio 2020

Renda básica e integração das favelas deveriam ser legados da covid-19

  • Coronavírus cria ‘tempestade perfeita’

  • Vulnerabilidade é maior nas favelas

  • É preciso ‘conhecer o pobre pelo nome’

  • Inovação divide líderes dos seguidores

OTAVIANO CANUTO e PEDRO HENRIQUE DE CRISTO

Em situações de catástrofe, como a crise combinada da covid-19 junto a seu impacto socioeconômico, o Estado é o único segurador em última instância. Como em momentos de guerra, linhas demarcatórias entre as esferas pública e privada são suspensas e a importância da ação do setor público aumenta extraordinariamente, fazendo com que, no pós-evento, nem tudo volte a ser como antes.

O novo coronavírus se constitui em catástrofe pela dinâmica epidemiológica global, cuja duração é incerta, como também pela tempestade perfeita que trouxe para a economia mundial, particularmente nos casos das economias em desenvolvimento.

Antes mesmo da covid-19 aterrissar na América Latina, a partir de fevereiro, já havia enviado ondas de choque resultantes de sua invasão na China, outros países asiáticos, Europa e Estados Unidos causando queda nos preços de commodities. Remessas de emigrantes, tão importantes para vários países em desenvolvimento, devem encolher em mais de US$ 100 bilhões esse ano, segundo o Banco Mundial. O turismo sofreu colapso, afetando negativamente economias como a Tailândia, México e Peru.

O impacto econômico da pandemia também reverberou sob a forma de choque nas finanças globais, suscitando fuga de ativos de risco. Segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na sigla em inglês), investidores externos tiraram US$ 95,5 bilhões dos mercados emergentes apenas no primeiro trimestre, à medida que o choque financeiro nos países avançados se desenrolava nas primeiras semanas de março. Foi a maior saída de capital de portfólio já registrada. Por seu turno, “mercados da fronteira” e outros mais pobres se defrontaram com uma repentina seca nas fontes de recursos externos.

Além de tais choques externos prévios, países em desenvolvimento simultaneamente enfrentam suas dificuldades relativas para combater a covid-19. Achatar curvas de pandemia e de recessão é ainda mais urgente e difícil quando se tem menor disponibilidade de leitos de hospitais, leitos de UTI e respiradores mecânicos, bem como quando se tem condições urbanas que facilitam a disseminação do vírus, como parcela grande da população vivendo em favelas. Outro fator agravante é ter uma alta taxa de informalidade na ocupação da população –de 50% a 90%, nos países em desenvolvimento– o que torna mais difícil a implementação necessária de políticas públicas de distanciamento social. Tudo isso com uma capacidade de endividamento, nesse momento justificável, menor que a de países ricos.

Entre as mudanças que precisam se tornar duráveis no Brasil como resultado dessa catástrofe ressaltamos duas, além do fortalecimento do SUS. Primeiro, a demonstração da possibilidade e da necessidade de ampliação e reforço do sistema de proteção social. A ampliação do Cadastro Único para tornar mais amplo o alcance da Renda Básica Emergencial poderá ser o embrião para não apenas estender o sistema de transferências antes limitado ao Bolsa Família, como para um futuro estabelecimento de políticas sociais bem antenadas com necessidades locais diferenciadas pelo país. É fundamental “conhecer o pobre pelo nome.”

Segundo, torna-se ainda mais evidente o quão importante é atuar pela verdadeira integração das favelas, onde vivem 17% dos brasileiros e existe o maior risco de tragédia devido a soma de alta densidade com condições sanitárias precárias, menor cobertura de serviços públicos e baixa-renda. A maior parte das mortes por covid-19 já se concentra nesses territórios em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Se a vulnerabilidade das favelas a catástrofes naturais e sociais já era reconhecida, a covid-19 deixa claro como se tem de ir de tal reconhecimento à ação pública com planos municipais bem-estruturados urgentemente.

A inovação divide os líderes dos seguidores e é nas crises que mais se precisa de líderes. Que os nossos realizem, no mínimo, uma extensão da renda básica e a efetiva integração das favelas como legado duradouro da tempestade perfeita que nos trouxe a covid-19.

Otaviano Canuto

Otaviano Canuto, 64 anos, é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp. Escreve para o Poder360 mensalmente.

Pedro Henrique de Cristo

Pedro Henrique de Cristo, 37 anos é polímata, urbanista e professor-visitante da Urman-Eafit Medellín.

 

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This Post Has 5 Comments

  1. Ephim Shluger

    Parabéns pelo artigo destacando a urgência dentro da presente emergencia sanitária: o atendimento da população mais desassistida e vulnerável do Brasil que hoje vive em favelas e periferias perigosas. Os população vivendo em favelas é estimados em 14.5 milhões de pessoas, segundo a Federação das Favelas do Rio (2020). Ha três prioridades que detecto nesta conjuntura: primeiro é a assistência imediata aos mais necessitados, vale dizer aos brasileiros mais vulneráveis, idosos, famílias sem trabalho, renda e ou poupança, com iniciativas de entrega de bolsa de alimento e uma ajuda suplementar em dinheiro nos próximos meses, que vem sendo realizado em micro-escala e pontualmente pelas entidades de assistência privada. Segundo, a sociedade e a administração publica devem reverter a situação existente nestes assentamentos, que hoje passam pelo retorno do crime organizado (tráfico e milícia) e reconquistar este território não somente com força policial e a intervenção do exercito, mas com um novo plano municipal de inclusão física, social e mitigação ambiental, um plano com horizonte de 20 anos – incluindo ação de reassentamento das famílias onde há risco iminente de colapso de suas unidades habitacionais, erguidas em areas protegidas, ounon-aedificandi, e de solos precários. Terceiro, inclusão dos jovens e desempregados em geral nas atividades de capacitação para a reconstrução da economia da cidade, durante e após a pandemia. Temos que ter mais audácia e olhar para a população dos nem-nem-nem, jovens sem instrução e sem trabalho, que acabam no setor informal ou escalados pelos contraventores. O novo programa de trabalho e renda iniciar com capacitação em atividades que o individuo escolher, e não somente o que o mercado demanda, assim novos talentos surgirão em diversos ramos da economia criativa, outros poderão ser capacitados para exercerem tarefas onde faltará mão de obra semi-especializada, nos moldes do programa do FDR nos Estados Unidos apos a grande depressao econômica dos anos 1930. Nesta perspectiva a cidade e as micro emporesas absorverão técnicos, mestres de obra e jardineiros para cuidar dos parques e jardins, recuperar e resignifiiar prédios abandonados, e arborizar grandes areas devastadas pela ocupação ilegal das encostas e os vales inundáveis, e despoluir lagos e baias, hoje abandonados pela sociedade e pelas sucessivas administrações publicas, deixando areas significativas de território aos grileiros e a milicia. Dá para fazer, se houver desejo politico (political will). Cabe lembrar que em outros lugares foi possível iniciar um ciclo virtuoso no encaminhamento da questão das favelas, cito Lima, Peru (década dos 1960), Singapura (década de 1970), e Hong-Kong (década de 1990) com projetos completos: desde soluções financeiras inteligentes com o swap fundiário, sem perdas para os moradores nem para a sociedade, ao desenho urbano ordenado e fácil de instalar infraestrutura e serviços públicos, e desenho de prédios para acomodar as famílias com dignidade e segurança. Aqui a prioridade ainda é, e cada vez mais escancarada pe a pandemia, é resolver de vez com um projeto inteligente, portanto custo-eficiente, o saneamento básico em todas as favelas. A precariedade dos sistemas existentes da origem as epidemias – malaria, dengue, zica, e o novo Coronavirus. resolver a coleta e destinação dos resíduos sólidos, esgoto sanitário e drenagem pluvial tratada, e a provisão de agua potável de qualidade e sem interrupção, como recomendam os relatórios da ONU, Banco Mundial e BID vem insistindo ha décadas. É uma grande insensatez tratar a favela como se fora um problema passageiro ou provisório, quando na verdade é uma solução que os trabalhadores e suas famílias desvendaram pelo proprio esforço e continuam vivendo em precariedade. Falta ainda o compromisso com o bem publico maior que é assegurar a boa saude de todos. Como seria a ação preventiva robusta e decisiva no território onde vivem os favelados e as populações de loteamentos irregulares nas periferias metropolitanas. Penso que só assim poderemos prevenir que pandemias, como a COVID-19 cause tantos danos, nesta perspectiva a tarefa posta acima é inadiável.

  2. Ephim Shluger

    P.S. Faltou incluir no meu comentário acima sobre os resultados espetaculares de inclusão social e mitigação ambiental realizados em Medellin, na Colombia a partir do ano 1998. Certamente um caso exemplar que virou referencia internacional, aponta para uma solução de re-desenho urbano, um plano concebido de forma integral e multisetorial, para a cidade que era considerada a mais perigosa da nossa região. Revela que a ênfase posta na integração dos territórios anteriormente definidos como “marginais” ao conjunto da cidade formal, foi realizada de forma cabal. O benefício maior desta transformação se revela na presente qualidade de vida de todos os cidadaos, distribuída a todos e ao longo do tempo (IDH) – uma dimensão com um inestimável valor! Vamos a luta.

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