Poderia o Banco Central fazer “afrouxamento quantitativo”?, analisa Otaviano Canuto

 

Poder 360, 14 novembro 2020

  • Trata-se de aquisição de títulos
  • Mercados emergentes fizeram uso
  • Prática não foi adotada pelo Brasil
  • País poderia incorrer em riscos


14.nov.2020 (sábado) – 6h00
atualizado: 14.nov.2020 (sábado) – 7h34

Nesse atípico ano de Covid-19, uma novidade foi o uso de “afrouxamento quantitativo” (QE em inglês) por bancos centrais em alguns mercados emergentes, ou seja, a aquisição de títulos públicos ou privados em mercados secundários como instrumento adicional na gestão monetária. Como observado em boletim divulgado quinta-feira pelo Banco de Compensações Internacionais, a resposta de política monetária nas economias emergentes, diante de choques de saída de capital como o ocorrido em março e abril, foi diferente de experiências passadas. Inclusive pela incorporação do QE, imaginado como viável apenas nas economias avançadas.

Em choques financeiros provocados por surtos de saída de capital e desvalorização cambial, no passado, tipicamente bancos centrais emergentes viam-se obrigados a apertar suas políticas monetárias para deter o curso. Dessa vez, além de estarem se defrontando com forte desaceleração econômica doméstica, como resultado da crise sanitária e de confinamentos associados à Covid-19, as ações agressivas de provisão de liquidez pelos bancos centrais nas economias avançadas facilitaram uma reação no sentido contrário.

Além de baixarem juros, relaxarem exigências de reservas bancárias e usarem reservas externas para minimizar a volatilidade cambial, algo em torno de 20 emergentes até inauguraram programas de compra de títulos públicos ou privados. Segundo avaliação do FMI, esses programas conseguiram ajudar na estabilização de mercados financeiros domésticos.

Cabe distinguir três grupos entre tais emergentes. Nos casos de Chile, Polônia e Hungria, por exemplo, os bancos centrais estavam operando com taxas de juros já próximas de seus limites inferiores e, portanto, se pode dizer que estavam em posição similar à das economias avançadas que recorreram ao QE como forma possível de adicionar estímulos e liquidez. Outro grupo, incluindo Índia e África do Sul, com juros bem acima de zero, fez QE para melhorar o funcionamento de mercados secundários de títulos. Já um terceiro grupo explicitou a intenção de aliviar a pressão de juros sobre o financiamento do governo nas circunstâncias da epidemia.  Gana e Guatemala, por exemplo, tiveram seus bancos centrais comprando emissões primárias de suas dívidas públicas.

Segundo a avaliação do FMI, o impacto sobre mercados financeiros domésticos foi positivo, em acréscimo aos efeitos diretos de cortes de juros domésticos, indiretos das aquisições de ativos pelo Federal Reserve e da melhora do apetite global por riscos. O QE desses emergentes aliviou estresses em mercados locais, reduziu taxas – algo entre 0,2 e 0,6 pontos percentuais, segundo o FMI – e não se desdobrou em fortes desvalorizações cambiais.

E o Brasil? Poderia ter o BC também feito um QE? Alguma operação twist, como fizeram outros emergentes, comprando títulos longos ao mesmo tempo em que vendiam papéis de curto prazo de modo a reduzir a inclinação da curva de juros, ou seja, as diferenças entre juros de longo e curto prazos? Afinal, a curva de juros da dívida pública brasileira empinou vertiginosamente a partir de agosto. A PEC emergencial incluiu a permissão para o BC comprar papéis públicos e privados no mercado secundário, expediente que não chegou a ser utilizado.

Há que considerar, por outro lado, dois aspectos importantes. Primeiro, o Brasil está num grupo de economias emergentes onde o apetite pelo risco por investidores externos não voltou ao que era antes do choque de março-abril. Tal grupo tem níveis elevados da dívida pública como proporção do PIB como característica comum.

O não-retorno do apetite por risco explica em parte porque a taxa de câmbio não voltou aos patamares pré-covid, apesar da melhora no saldo em conta corrente do balanço de pagamentos. Pelo contrário, o real voltou a desvalorizar de julho a setembro.

Segundo, os prêmios de risco embutidos na curva temporal de juros da dívida pública brasileira – sua inclinação – se elevaram, particularmente a partir de agosto, quando cresceram as dúvidas sobre o retorno ao teto dos gastos e ao arcabouço fiscal prévio a partir do ano que vem. Enquanto a taxa básica descia a patamares negativos, em termos reais, os juros de títulos para prazos acima de 4 anos subiram a níveis mais altos que em fevereiro.

Além da pandemia, a percepção de riscos fiscais, ou seja, de não retorno a alguma trajetória não explosiva a partir do ano que vem é o que subjaz tanto a subida de juros longos quanto, em parte, a persistência da desvalorização cambial. O Tesouro pôde evitar ter que pagar juros mais altos na cobertura do extraordinário e justificável déficit público desse ano mediante endividamento de curto prazo. Mas em algum momento à frente as necessidades de rolagem vão impor um enfrentamento daquelas dúvidas, até porque o encurtamento da dívida também acentua a vulnerabilidade diante de surtos de desconfiança.

Nesse contexto, fazer twist com a dívida pública, mesmo com a venda de títulos curtos enxugando a liquidez colocada via compra de dívida longa, poderia incorrer em outro risco. Se os juros longos estão refletindo prêmios de risco fiscal exigidos por detentores, reduzi­r juros na marra pode simplesmente levar tais detentores alhures, inclusive para fora, o que poderia levar ao círculo vicioso entre desvalorização cambial, inflação e taxas de juros.

Melhor focar no reforço da confiança fiscal do que esperar que a política monetária – QE e não-QE – possa fazer milagres.

Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute,  membro visitante do ILAS em Columbia University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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