A ciência tem um papel fundamental no desenvolvimento brasileiro

 

FOLHA DE S. PAULO 19 JULHO 2022

POR QUÊ? 22 JULHO 2022

Esforços de contenção fiscal precisam incluir um reordenamento de gastos que preserve e amplie investimentos em ciência 

Despedido em 1982 da indústria mecânica em que havia trabalhado oito anos, o engenheiro Odil Garcez Filho abriu uma lanchonete na avenida Paulista, em São Paulo, e a batizou como “O engenheiro que virou suco”. O estabelecimento ficou famoso e durou cinco anos, até Garcez buscar outros negócios no comércio e na construção. Em 2001, aos 51 anos, faleceu de leucemia.

Tenho um amigo engenheiro de alimentos, professor e hoje reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Antonio José Meirelles, a quem chamei “o engenheiro que virou álcool” em artigo no jornal O Estado de S. Paulo, em 2000. Considerei sua experiência emblemática do que precisaria ocorrer em maior escala no Brasil.

Desde então, minhas andanças pelo mundo me levaram a encontrar experiências com muito em comum com a dele, particularmente em países que têm exibido sucesso em subir na escada da renda per capita, como Coreia do Sul e China. Em todas elas, encontrei trajetórias conectando inovações tecnológicas, novos produtos e processos, a uma origem em investimentos científicos.

Antonio José defendeu sua tese de doutorado em 1987, na Alemanha, tornando-se depois professor na Unicamp. Usando a fronteira de conhecimentos disponíveis à época, desenvolveu uma forma inédita de produzir álcool anidro, pela qual ganhou o prêmio Jovem Cientista. Com um trabalho de ampliação de escala operacional, feito em conjunto com outros engenheiros, fabricantes de equipamentos para o setor e usinas dispostas a experimentar, sua tese e seus experimentos originais viriam a se tornar responsáveis hoje em dia por mais de 30% da produção brasileira de álcool anidro, pela sua capacidade de reduzir o consumo de energia e/ou duplicar a produção. Essa experiência ilustra bem tanto a necessidade das chamadas “instituições que fazem a ponte entre ciência e inovação”, quanto os ganhos decorrentes de esforços de pesquisa científica em universidades ou instituições de pesquisa.

Em 2008, quando era vice-presidente no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), visitei o que era então um protótipo de produção de placas solares na Coreia do Sul, que veio a se tornar um êxito de produção e exportação. Em comum com o caso de Antônio José, tinha na origem os estudos científicos de um engenheiro coreano que, em conjunto com colegas engenheiros, resolveu utilizá-los para adaptar e aprimorar, em escala operacional e adaptada a circunstâncias locais, uma patente registrada na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos. O ponto a frisar é a relevância do investimento público coreano na capacitação científica de seu país.

Abordei o assunto em capítulo de meu livro mais recente, sobre globalização e a escada íngreme da renda per capita. Os sucessos de Coreia do Sul e China têm relação, em termos mais gerais, justamente com esforços locais de construção de capacidades para adaptar, recriar e inovar em cima de conhecimentos científicos e tecnológicos disponibilizados via globalização.

Desde 2000, os gastos com P&D dispararam na China e os estoques de patentes internacionais se acumularam na Coreia. Esses países se juntaram a líderes tradicionais em setores como equipamentos elétricos e óticos e, principalmente a Coreia, em máquinas e equipamentos. Ascender na escada tecnológica não teria sido possível sem a contrapartida de investimentos educacionais e científicos locais nestes países.

Meus anos como vice-presidente no Banco Mundial também me deram oportunidade de conhecer ecossistemas de inovação, como o existente em torno de universidades no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Ecossistemas de inovação correspondem a ambientes onde interagem diferentes atores em torno da inovação. São polos que reúnem infraestrutura, capital humano e finanças, constituindo ambientes de P&D em busca de soluções para problemas de empresas e mercados, criando produtos, serviços e projetos que respondam a tais necessidades. Incorporam instituições que fazem a ponte entre ciência e inovação, ponte essa construída a partir do conhecimento científico.

No Brasil, um exemplo de projeto promissor nessa direção está no “Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (HIDS)” em Campinas, São Paulo, fisicamente ao lado da Unicamp. Com apoio do BID, o HIDS constituirá uma cadeia onde estarão, além da Unicamp, o Sirius (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, o principal anel acelerador de partículas do Hemisfério Sul), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPQD), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e a Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas). Segundo os idealizadores do projeto na Unicamp, em 2014, o HIDS será uma espécie de “Zona Franca de Conhecimento”, em cujo entorno se localizarão empresas que desenvolvam tecnologias inovadoras e educação.

Vejam. A economia brasileira está às voltas já há décadas com uma profunda “anemia de produtividade”, por motivos como insuficiência de educação, ambiente de negócios desfavorável, carência de infraestrutura e um ritmo longe do adequado na adaptação e criação de inovações tecnológicas. Pelo que já observamos neste artigo, depreende-se a falta que faz não ter mais investimentos científicos e pontes reforçadas entre estes e a economia.

A anemia de produtividade alimenta e é reforçada por uma “obesidade nos gastos públicos”, com o Estado gastando muito, porém mal no que diz respeito a seu impacto sobre produtividade e crescimento econômico do país. Faz-se necessário que os esforços de contenção fiscal incluam um reordenamento de gastos que preserve e amplie investimentos em ciência.

Hoje o investimento em ciência está abaixo da média mundial: 1,26% do PIB, contra 1,79% da média mundial. Em 2020, o Governo Federal investiu, em Ciência e Tecnologia, um montante menor que o volume de recursos aplicados em 2009.

A ciência deve participar da reconstrução do Brasil.

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil.

Otaviano Canuto

Membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp

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