O novo fantasma da bolha que espreita a economia

 

EPOCA – 9 de agosto de 2019

Gabriel Martins

09/08/2019 – 06:00 / Atualizado em 09/08/2019 – 09:16

Queda dos juros americanos reaviva temores de uma próxima hecatombe financeira

Investidores, bancos e até mesmo agências de classificação de risco tinham opinião quase unânime: ninguém deixaria de pagar hipotecas, já que as taxas de juros eram baixas, o valor cabia no bolso e um calote levaria à perda da casa própria. Não havia dúvidas sobre isso. E, assim, no início do século XXI, americanos compraram imóveis como nunca. Os juros estavam baixos como havia muito não se via. E os bancos emprestaram como nunca, com pouquíssimas exigências sobre a capacidade de pagamento de seus novos clientes — afinal, era esse crédito que dava um retorno maior aos investidores.

Até que os juros voltaram a subir. E a bolha do crédito imobiliário de alto risco nos Estados Unidos — o famoso subprime — estourou, mergulhando o mundo na crise global de 2008, que daria início a um período que entrou para a história como a Grande Recessão.

A receita é conhecida dos economistas desde a bolha das tulipas, em 1637. Em momentos de otimismo da economia, um excesso de confiança dos investidores os leva a apostar num cenário de ganhos ininterruptos. É quase uma cegueira coletiva: uma confiança cega de que a bonança não terá fim. Até que vem a crise. E a bolha estoura.

Se nas tulipas o exotismo da flor recém-trazida do Oriente despertou a cobiça da aristocracia holandesa, fazendo o preço dos bulbos disparar (e também de recém-criados “contratos futuros” de tulipa), na economia moderna o fermento para bolhas é o juro baixo. A taxa menor desperta o apetite dos investidores por aplicações menos convencionais, na busca de manter seus lucros.

Foi assim em 2008. E foi assim em 2000, quando estourou a bolha anterior, do otimismo com as empresas da Nova Economia, as recém-chegadas “ponto.com”. Neste mês, quando o Federal Reserve (Fed) reduziu sua taxa de juros, no primeiro corte desde 2008, surgiu a questão: qual será a próxima bolha?

“Descobrir qual a próxima bolha econômica é uma questão que sistematicamente tenta ser respondida por muitos, mas envolve uma análise complexa e até mesmo um certo ‘achismo’. O que a história mostra, porém, é que as bolhas não se repetem pelos mesmos motivos”, disse Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do think tank Policy Center for The New South.

A lista de suspeitos varia conforme o interlocutor. Pode vir da enorme inadimplência no crédito estudantil americano — bolha que teria grande impacto social, mas não faria um estrago econômico considerável —; da China, com seus investimentos excessivos em infraestrutura; da dívida elevada de alguns países europeus, como a Itália; ou de complexos instrumentos financeiros usados por empresas americanas, os CLOs, sigla para Collateralized Loan Obligation(talvez um primo do sofisticado subprime dos anos 2000).

“Qual a próxima bolha? Analistas colocam suas fichas na China, no crédito estudantil americano, na dívida elevada da Itália e de outros países europeus e em alguns títulos financeiros”

“Assim como no auge dos títulos lastreados em hipotecas, na primeira década do atual século, há uma grande demanda de investidores por CLOs, o que lembra a fase de bonança do ciclo do fluxo de capital. Um padrão recorrente no tempo e no espaço é que as sementes das crises financeiras são semeadas nos bons momentos, quando são feitos empréstimos ruins”, escreveu a americana Carmen Reinhart, de Harvard, em um artigo de dezembro do ano passado.

Reinhart é uma das mais conceituadas economistas do planeta e autora, com Kenneth Rogoff, do clássico Desta vez é diferente , livro que disseca oito séculos de crises econômicas. O paralelo do CLO com o subprime não é trivial.

A gênese desses títulos lastreados em hipotecas de alto risco (ou subprime, porque não eram “prime”, não tinham boa classificação de crédito) remonta a 2001. Mais precisamente, aos atentados terroristas às Torres Gêmeas. Para minimizar suas consequências na economia global, o Banco Central americano e outros bancos centrais do mundo inteiro reduziram drasticamente suas taxas de juros.

Isso criou um incentivo duplo. Famílias americanas que não teriam condições em situações normais de tomar empréstimos para comprar a casa própria repentinamente se viram diante de financiamentos com taxas vantajosas. Por outro lado, bancos ávidos por garantir retorno maior para as aplicações de seus investidores criaram instrumentos financeiros lastreados nessas hipotecas e os ofereceram não só nos EUA, como a clientes da Europa, Ásia e América Latina.

O mercado imobiliário viu seus preços subir numa trajetória que parecia irreversível, e muitos americanos começaram a fazer hipoteca não só para comprar sua casa própria, como também segundos e terceiros imóveis. Afinal, com imóveis valorizados, ficava fácil tomar um segundo empréstimo imobiliário. Foi um período áureo para consumidores e investidores.

Até que os preços dos imóveis começaram a cair, os juros voltaram a subir e a conta não mais fechou. A bolha estourou afetando não só os EUA, como a economia global, já que esses instrumentos financeiros lastreados no subprime haviam se espalhado pelo planeta.

O CLO também é um instrumento financeiro lastreado em empréstimos de maior risco, no caso, crédito para um perfil específico de empresas americanas. São companhias que não são nem “investment grade” nem consideradas arriscadas demais (junk, no jargão do mercado). Estão ali no meio do caminho. O problema é que há muito crédito concentrado nessa fronteira. E, se houver algum choque no mercado (ou seja, quando o ciclo mudar e os juros voltarem a subir), argumenta Reinhart, esses empréstimos serão imediatamente rebaixados para a zona de risco.

Por enquanto, a pressão é por novas reduções de juros. Em tuíte na quarta-feira, o presidente americano Donald Trump afirmou que o Fed precisa “cortar mais e mais rápido” a taxa. Ou seja, o fermento para uma possível bolha deverá aumentar.

Ainda nos Estados Unidos, porém em menor grau, outro suspeito no momento é a dívida dos estudantes, afirmou Canuto. Em dezembro de 2018, de acordo com relatórios do Fed, a dívida de empréstimos a estudantes nos EUA atingiu um recorde de US$ 1,4 trilhão. É mais que o dobro dos US$ 675 bilhões em junho de 2009, um ano após a Grande Recessão. Desse total, 11% não foram pagos ou estão com a quitação atrasada há mais de 90 dias.

O problema não é só o tamanho da dívida, mas seu calote. As dívidas estão em atraso mesmo com a economia americana perto do pleno emprego. As contratações em alta mascaram os baixos salários pagos aos recém-formados. De novo, o quadro pode se agravar quando os juros voltarem a subir: com taxas maiores, a inadimplência pode sair do controle.

“‘Até agora, os Bancos Centrais têm optado por não provocar recessão, correndo o risco de provocar bolhas’, avaliou o economista José Júlio Senna”

Do outro lado do Atlântico, o risco da Europa vem do elevado endividamento público, num momento em que a população local envelhece num ritmo acelerado, afetando o crescimento econômico.

“Há países da Europa com dívidas públicas extremamente elevadas. Quando começar a tendência de aumento nas taxas de juros, o que pode ser desencadeado é um aumento na percepção de risco, que culmina em uma corrida sobre a dívida desses países. O caso que mais inspira atenção, agora, é o italiano. O atual período do país é de pessoas se preparando para as aposentadorias. Então, existe um excesso de poupança que derruba as taxas de juros. Mesmo quando o Banco Central tende a aumentá-las, elas são reduzidas pelo mercado”, explicou Paulo Tenani, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eesp) e chefe de pesquisa da Aqua Wealth Management.

“Em um segundo estágio, teremos o momento em que essas pessoas começam a se aposentar, e o problema vira outro. A tendência será invertida, e a pressão do mercado passa a ser de aumento nas taxas de juros globais. Nessa transição, as vulnerabilidades vão aparecer”, acrescentou Tenani.

Em abril deste ano, a dívida pública italiana atingiu € 2,3 trilhões, uma cifra que equivale a mais de 130% do PIB do país.

Segunda maior economia do mundo e alvo preferencial da retórica protecionista de Donald Trump, a China mantém um crescimento econômico pujante há décadas. A expansão foi baseada em pesados investimentos em infraestrutura. Apenas recentemente o país tenta fazer uma transição, para ancorar sua economia mais em consumo e menos em investimento.

“O forte crescimento da China foi resultado de financiamentos para projetos de infraestrutura e habitação. Esse mecanismo sustentou durante bom tempo o crescimento, mas ele veio acompanhado por uma explosão no endividamento. O país investiu maciçamente, e até em obras gigantescas, que, ao ficarem prontas, não justificaram um grau tão elevado de investimento”, explicou Canuto. “A proporção entre projetos que não tiveram efeito prático algum para a sociedade chinesa e aqueles que tiveram fundamentos e resultaram em produtividade não é fácil de ser mensurada. Porém, o fato é que o maciço investimento manteve o PIB crescendo de forma pujante e, atualmente, existe uma dívida extremamente elevada.”

Qualquer que seja a origem da próxima bolha — se é que ela vai mesmo estourar —, a decisão de cortar ou não os juros já é tema de debate acalorado entre economistas. Definir a taxa de juros é pedra angular na política econômica.

“Toda a discussão sobre bolhas tem a ver com uma escolha difícil que o Banco Central precisa fazer. Se o juro de equilíbrio de uma economia está a 1%, mas a taxa praticada na economia é de 4%, a consequência é aperto monetário, aumento de desemprego e recessão, por exemplo. Por outro lado, se os juros são reduzidos para acompanhar o equilíbrio, o ambiente fica propício para o surgimento de bolhas. Até agora, os bancos centrais têm optado por não provocar recessão, correndo o risco de provocar bolhas”, afirmou José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV e ex-diretor do Banco Central.