Novas tecnologias financeiras vão gerar um triplo dividendo para a América Latina

 

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO

A nova onda de inovações tecnológicas que impactam as finanças, as fintechs, tem o potencial de trazer um triplo dividendo positivo para a América Latina. Pode aumentar a competição no setor financeiro e reduzir custos de transação e dos serviços, além de promover a inclusão financeira e o crescimento econômico. Para que esse potencial seja plenamente aproveitado, no entanto, é necessário buscar uma adequação das estruturas nacionais de regulamentação e vigilância financeira que torne possível gerenciar os riscos que acompanham essas tecnologias.

Recentemente, o FMI (Berkmen et al, 2019) e o BID mostraram quão longo ainda é o caminho a percorrer na região quando se trata de acesso, profundidade e eficiência nas finanças. Existe uma variação significativa entre países, com Brasil, Barbados e Chile como casos relativamente mais avançados, seguidos de perto por Colômbia, Bahamas, México e Peru. Já Nicarágua, Haiti e Paraguai ficam atrás de países de baixa renda em outras partes do mundo. No entanto, todos eles apresentam algum tipo de deficiência: baixos índices de crédito como proporção do PIB, altas taxas cobradas por serviços, alta dependência de fontes financeiras não tradicionais ou grandes parcelas não bancarizadas da população. As novas tecnologias usadas nas finanças podem ajudar a mudar isso.
Tomemos, por exemplo, as oportunidades abertas pelos serviços bancários e de pagamento por telefone celular. Agora, as operadoras podem fornecer serviços de tipo bancário e as plataformas de comércio eletrônico podem oferecer serviços de pagamento por telefonia móvel. Em áreas remotas, bancos podem nomear agentes certificados para alcançar clientes não bancários por meio de dispositivos móveis.

A experiência com os serviços bancários por telefonia móvel iniciados pela M-Pesa no Quênia em 2007 serve de modelo. O dinheiro pode ser transferido através de mensagens de telefone celular: os destinatários sacam dinheiro por meio de agentes locais certificados. Em dez anos, quase 30 milhões de usuários em dez países passaram a ter atendimento. O amplo uso de serviços de pagamento por celular na China é, obviamente, outro exemplo notável.

Usar serviços bancários por celular para enviar dinheiro além das fronteiras pode muito bem ser uma maneira de reduzir os custos de remessas para a América Latina. Remessas de emigrantes correspondem a 1,5% do PIB da região, ultrapassando até 15% em casos como El Salvador, Haiti, Honduras e Jamaica. Apesar da alta participação da região no total de remessas de emigrantes no mundo, seu uso de telefonia móvel para enviar e receber remessas é relativamente baixo, enquanto predominam bancos e operadores de transferência de dinheiro tradicionais e caros. Estes cobram cerca de 6% dos valores pagos pelos remetentes, enquanto as remessas de dinheiro por celular na África subsaariana custam 3%, segundo o relatório do FMI.

A internet também abriu novas possibilidades de intermediação financeira. Por exemplo, as empresas de tecnologia agora podem competir ou colaborar com instituições financeiras tradicionais para oferecer serviços bancários e de seguros on-line. Da mesma forma, as plataformas da internet facilitaram atividades de financiamento, como o crowdfunding, empréstimos entre pares (P2P) e financiamento ao consumidor. A experiência da China com o financiamento pela internet ilustra seu potencial – bem como os riscos associados em casos de expansão excessiva (Canuto & Zhang, 2015).

A entrada de novos operadores não bancários e de plataformas como novos agentes significa mais concorrência e prestação de serviços mais adaptados a clientes sem atendimento bancário. Os reguladores financeiros precisam facilitar isso.

No Brasil, por exemplo, o Banco Central está prestes a colocar em vigor medidas para estender o uso dos caixas eletrônicos existentes para clientes de startups de tecnologia financeira, bancos digitais e bancos de pequeno e médio porte. As redes tradicionais de agências físicas têm perdido espaço para os caixas eletrônicos e, dado que a alta informalidade e a baixa inclusão financeira levam a uma forte adesão a pagamentos em espécie no país, o acesso aos caixas deve ajudar novos bancos online e os serviços via fintechs a enfrentarem o desafio da distribuição de dinheiro. Essa medida faz parte de uma agenda regulatória seguida pelo Banco Central do Brasil desde 2016 para aumentar a concorrência e a inovação, além da inclusão financeira.

A tecnologia de blockchains é outra fronteira aberta com amplo impacto potencial (Pereira da Silva, 2018). Blockchains são redes de computadores nas quais as transações podem ser registradas e armazenadas de maneira descentralizada e confiável, economizando assim a necessidade de intermediários ou validadores. Elas operam como um banco de dados descentralizado, onde informações geradas pelos usuários e com links internos ao banco de dados são verificadas e agrupadas em intervalos regulares de tempo, formando uma cadeia de blocos protegidos por criptografia. Os registros ficam protegidos contra falsificação ou modificação, pois qualquer alteração só pode ocorrer coletivamente ou por um subconjunto de usuários responsáveis ​​por essa tarefa.

Blockchains podem ajudar a região a enfrentar o problema – desde a crise financeira global – da perda de relações de grandes bancos internacionais com correspondentes bancários locais. A título de “eliminação de riscos” (de-risking), grandes bancos internacionais marginalizaram boa parte da região, com medo de multas pesadas impostas pelos Estados Unidos em casos de descoberta de lavagem de dinheiro ou financiamento ao terrorismo. Certamente também influiu a baixa taxa de retorno para os grandes bancos nessas operações.

A perda das relações com correspondentes bancários locais tornou-se um pesadelo para muitos países da região (Canuto e Ramcharan, 2015). Segundo o BIS, esses relacionamentos continuam em declínio global e cada vez mais concentrados. Ao migrar para um sistema baseado em blockchains, as transferências bancárias internacionais podem eliminar intermediários e permitir transações diretas, economizando tempo e taxas e, assim, favorecendo o retorno da correspondência bancária (Dong He et al, 2017).

Outro exemplo de como blockchains podem aumentar a concorrência e a eficiência, facilitar pagamentos comerciais através de fronteiras, além de aumentar a inclusão financeira e aumentar a renda vem de um projeto-piloto implementado no Haiti, financiado pelo Banco Mundial. Produtores haitianos de manga e abacate foram conectados a consumidores nos Estados Unidos e no Canadá por meio de um corretor equipado com blockchains. As taxas de perdas de produtos caíram, revendedores intermediários foram eliminados, as mercadorias de toda a cadeia de valor são rastreadas e a renda dos agricultores haitianos aumentou oito vezes (Berkmen et al, 2019).

Finalmente, a avaliação de risco dos mutuários se tornará mais barata e mais rápida com o uso de inteligência artificial, aprendizado de máquina e big data. Pequenas e médias empresas, como outros clientes com atendimento precário, poderão se beneficiar de taxas de serviço e spreads de taxa de juros mais baixos.

Para progredir na região, a onda de inovações tecnológicas nas finanças está exigindo medidas regulatórias facilitadoras específicas a cada país, além de capacitação institucional. Também deve ser dada atenção ao gerenciamento de novos riscos à estabilidade financeira, riscos cibernéticos e à privacidade de dados. Dado o triplo dividendo em termos de inclusão financeira, concorrência e eficiência, no entanto, certamente vale a pena.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

 

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