Como descarbonizar a economia – entrevista com Otaviano Canuto

 

Humberto Maia Junior

Otaviano Canuto é reconhecido pelos seus pares como um dos grandes economistas brasileiros. Tem vasto currículo acadêmico e em instituições multilaterais. Atualmente, ele é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da Universidade George Washington e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

Uma de suas especialidades foi o estudo acerca do desenvolvimento social e econômico. Questões como “como vencer a armadilha da renda média” sempre receberam grande atenção de Canuto. Recentemente, passou a dar atenção ao desafio econômico global da transição para a economia de zero carbono. E foi sobre esse tema que ele conversou com a Convergência pelo Brasil. Leia abaixo.

Como o mundo deverá fazer a transição bem sucedida para a economia de zero carbono?

Será necessário acelerar o passo na contenção global de emissões de carbono, caso se queira que aumentos já esperados nas temperaturas médias globais fiquem abaixo de 2º C ou 1,5º C e suas consequências climáticas sejam menos desastrosas. Mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam substancialmente reduzidas nas próximas décadas, o aquecimento global vai continuar por pelo menos mais um século.

A transição para “zero” emissões envolverá três processos econômicos simultâneos. Antes de tudo, uma alteração significativa nos preços relativos de bens e serviços, com estes passando a refletir a intensidade de uso do carbono, cujo preço terá de subir de zero a patamares significativos. A descarbonização não será rápida o suficiente se o preço do carbono continuar sendo o de um “bem livre” da natureza.

Adicionalmente, trabalhadores terão de ser realocados das atividades intensivas em carbono para seus substitutos verdes. Haverá não apenas o desafio de requalificação, como também o de assegurar que novos empregos sejam suficientemente criados nas atividades dinâmicas.

Terceiro, haverá obsolescência acelerada dos estoques existentes de ativos físicos (máquinas e equipamentos, construções, veículos) e intangíveis associados a atividades intensivas em carbono. A contrapartida terá de ser o investimento acelerado nos novos ativos que lhes substituirão.

O retorno socioeconômico da descarbonização tem de incluir evitar que ondas de calor, enchentes, furacões, secas, inundações e temporais como os deste ano se tornem ainda mais intensos e frequentes, até porque o custo disso seria perdas cada vez mais significativas para o PIB das nações.

O senhor vê a possibilidade de o mundo se unir em torno desse desafio ou veremos apenas ações de países ou, no máximo, em blocos (como UE)?

O Acordo de Paris, com comprometimentos voluntários dos países em torno de metas de descarbonização, parece ser o único meio viável de união. Alguma alternativa multilateral seria trabalhosa de obter, dado que a negociação para tal teria de ocorrer em detalhes e é aí onde mora o diabo! Ao mesmo tempo em que o tempo de fazer a descarbonização importa, dadas as projeções de emissões anuais caso nada seja feito a respeito delas. Dependeremos, portanto, de ações de países ou blocos.

Iniciativas unilaterais com tentativa de impor algo aos demais – como aludido por europeus na proposta de estabelecer “tarifas de carbono na fronteira” (Carbon Border Tax) da União Europeia – podem levar a rupturas no sistema multilateral de comércio, com consequente empobrecimento de países e, assim, tornar mais difícil o comprometimento com a agenda de descarbonização.

Como garantir que todos os países se comprometam com as metas necessárias (e o cumprimento delas)?

O comprometimento terá de ser unilateral e voluntário. O princípio de “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” conforme níveis de riqueza e desenvolvimento dos países, reconhecido no Acordo em Paris, deverá ser obedecido. Suporte – tecnológico e financeiro – aos países mais pobres teria de ser cumprido.

Criar uma economia de zero carbono será um desafio imenso para o os países de regiões mais pobres, como a África e partes da Ásia, que estão em estágio de desenvolvimento abaixo de outras regiões do mundo. Como esses países podem fazer a transição ao mesmo tempo em que precisam dar melhores condições de vida à população?

A boa notícia em relação a isso é que a evolução rumo a tecnologias mais limpas e com custos declinantes tem ocorrido. Isso torna possível a que a transição e o “verdejamento” não sejam contraditórios com a melhora de condições de vida da população.

A má notícia são os obstáculos de outra natureza a tais investimentos – particularmente no caso da infraestrutura em países não avançados. Há necessidade de harmonização de regras para que carteiras de ativos em vários países possam ser construídas – algo relevante particularmente no caso de economias pequenas – e se possa viabilizar uma ponte com investidores internacionais em busca de aplicações com retorno. De novo, aqui boa governança e transparência serão fundamentais.

O senhor apoia a proposta do Raghuram Rajan para taxar os países que emitem além da média global e subsidiar os países que emitem menos?

Definitivamente. A perspectiva tecnológica favorável não evitará que a transição da descarbonização tenha possivelmente impactos regressivos de renda. Basta observar que, por exemplo, imóveis e suas necessidades de reconstrução ou adaptação correspondem a parcela maior dos patrimônios na parte de baixo da pirâmide de renda dos países. A taxação direta do carbono terá impactos diferenciados sobre diferentes grupos urbanos. Do mesmo modo, há que não se perder de vista as necessidades de requalificação e emprego de trabalhadores diretamente afetados. Seria importante assegurar mecanismos de transferência de renda dentro de – e entre – países associados à precificação do carbono, para mitigar impactos regressivos do combate à mudança climática. Nesse contexto, há até um dever moral de que os países que emitem além da média global subsidiem os países que emitem menos.

O que esperar da COP-26, em novembro?

A confirmação e reforço dos compromissos já estabelecidos. O retorno dos Estados Unidos será importante. As dificuldades econômicas recentes, para China e outros, associadas ao corte de uso de carvão e a insuficiência na disponibilidade de gás, não constituem boa notícia no que diz respeito ao comprometimento com velocidade de descarbonização.

Autoridades monetárias de diversos países, entre eles o Brasil, começam dar atenção aos impactos da mudança climática na macroeconomia e no sistema financeiro. Eles estão no caminho certo?

Pode-se apontar três justificativas para bancos centrais darem atenção aos impactos da mudança climática na macroeconomia e no sistema financeiro. A primeira – e mais óbvia – é o conjunto de riscos à estabilidade financeira potencialmente trazidos por desastres naturais, agora mais frequentes e adversos acompanhando o aquecimento global. Este é o caso em particular de setores financeiros como bancos e companhias de seguros.

Uma segunda razão para atenção de bancos centrais sobre mudança climática e suas consequências diz respeito ao impacto destas sobre crescimento econômico e inflação e, portanto, sobre suas decisões de política monetária.

A terceira área de potencial envolvimento de bancos centrais na questão da mudança climática é menos consensual. Diz respeito a usar seus balanços para favorecer sua mitigação. Por exemplo, dar tratamento especial a “títulos verdes” em seus programas de aquisição de ativos, fazendo do “afrouxamento quantitativo” um “verdejamento quantitativo”.