Canuto prefere ajuste “não gradual” de tarifas

 

Valor Economico, 14 de maio de 2015

Por Sergio Lamucci | De Washington

O Brasil terá de fazer ajustes importantes em 2015, como a correção dos preços administrados, de preferência evitando gradualismos, e a elevação do superávit primário, acompanhada de uma melhora da qualidade da política fiscal, diz o consultor-sênior para os Brics do Banco Mundial, Otaviano Canuto. Observador atento do que se passa com os emergentes, Canuto acredita que o efeito da redução dos estímulos monetários nos Estados Unidos sobre esses países não será dos mais fortes daqui para frente. Para o Brasil, os desdobramentos da desaceleração da China talvez tenham mais importância do que a redução dos estímulos monetários americanos, afirma ele, considerando mais provável que o país asiático evite um pouso forçado.

Ao falar da correção dos preços administrados (como tarifas de energia e preços de combustíveis) esperada para o ano que vem, Canuto diz que, “como economista”, tende a preferir ajustes não graduais. “Enquanto a percepção dos agentes for de que o ajuste está incompleto, as expectativas de inflação não vão ajudar no comportamento da própria inflação.” Mas ele ressalva que, se houver uma sinalização clara das regras da gradualidade do ajuste, pode ser que não seja necessário um aumento de uma vez. Um ponto fundamental, contudo, continua Canuto, é que a situação desses preços têm um impacto sobre a formação das expectativas futuras de inflação. Canuto participa hoje do 3º World Economy and Brazil, em Nova York, seminário promovido pela FGV Projetos e pela Brazilian American Chamber of Commerce.

Segundo ele, além do impacto dos preços administrados sobre as projeções para os índices de preços, a inflação no Brasil continua elevada mesmo depois de os juros terem subido de 7,25% para 11% ao ano porque “a economia demanda coisas além do que o sistema pode produzir”. Esse descompasso entre oferta e demanda se expressa de duas maneiras – na redução do saldo comercial e nos índices de preços.

Sobre a política fiscal, Canuto afirma que será preciso elevar o superávit primário, mas também promover um ajuste das contas públicas que tenha uma perspectiva plurianual, de longo prazo. “É importante não fazer aperto baseado na contenção de despesas na boca do caixa, com cortes de gastos essenciais. Para tornar a meta factível, e para não depender de manobras com restos a pagar, os itens geradores de receita e despesa têm que ser revisados para dar um horizonte de vários anos, mostrar que o ajuste é para valer”, afirma Canuto. Possível medida é revisar pensões por morte, que no Brasil consomem cerca de 3% do PIB.

“Eu tenho certeza de que quem quer que ganhe as eleições terá que abrir as diversas caixinhas e diferenciar os tipos de gastos que estão lá dentro. Em cada uma delas, haverá gastos que se justificam por motivos de redução da pobreza, por apoio ao investimento público em infraestrutura ou nas funções públicas, mas também haverá gastos que não se justificam por nenhum desses dois critérios. Você precisa colocar os holofotes neles, porque, à medida que você faz isso, a probabilidade do apoio da população às mudanças vai ser grande.”

Na avaliação do economista do Banco Mundial, essa mudança qualitativa terá que ser acompanha pela elevação do superávit primário. “Se nós queremos ter um país em que a riqueza privada hospedada no sistema financeiro esteja direcionada para a criação de ativos novos no próprio setor privado, uma coisa a fazer é reduzir a dívida pública bruta, e isso passa pelo aumento do superávit primário”, afirma ele.

Para Canuto, a combinação de crescimento baixo, inflação alta e déficit em conta corrente crescente indica que o Brasil esgotou o padrão de crescimento que teve “excelente desempenho social no novo milênio”, sem engatar a marcha para mudar de modelo, mais baseado no investimento do que no consumo. “Enquanto a reação em 2008 e 2009 permitiu uma recuperação rápida e primorosa, o Brasil, como Índia, Indonésia e Rússia, não se deu conta de que aquela reação anticíclica vitoriosa teria o impacto de uma vez”, diz ele. A tentação foi muito forte de simplesmente usar as boas condições de liquidez e o entusiasmo para fazer mais do mesmo, segundo Canuto. “O crédito ao consumo subiu nesses países todos. Não houve preocupação com a mudança no sinal do saldo comercial e com a recriação de condições propícias à ampliação do investimento.”

Para voltar a crescer a taxas mais elevadas, o Brasil precisa de mais investimentos em infraestrutura e melhorar o ambiente de negócios. Também é fundamental melhorar a qualidade do gasto público, diz ele. “Num país em que, por opção democrática, 35% do PIB são gerados a partir do Estado, a qualidade do gasto público afeta muito o potencial de crescimento.”

Canuto considera que a redução dos estímulos monetários pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) não deverá causar grandes sobressaltos nos emergentes. Além de não vislumbrar uma alta forte dos juros americanos, ele lembra que já houve um ajuste muito forte nos portfólios globais do ano passado para cá, depois que o Fed acenou em maio de 2013 com a perspectiva de diminuição das compras de ativos. Os países que mais sofreram num primeiro momento foram os que haviam recebido fluxos de capitais elevados no período anterior, assim como os que tinham mercados financeiros maiores.

“As economias com mercados grandes e com liquidez serviram principalmente a tomadas de posições especulativas numa direção e na outra. É o preço que se paga quando se tem mercados um pouco mais sofisticados”, diz Canuto, para quem o Brasil tem uma situação do balanço de pagamentos bem mais tranquila que a de outros emergentes apontados que foram apontados como vulneráveis a partir do ano passado, como Turquia, Índia, Indonésia e África do Sul. O Brasil tem mais fragilidades em aspectos domésticos, como o tamanho da dívida bruta e ao ritmo de crescimento.

Canuto entende que o momento positivo dos ativos brasileiros nos últimos meses se deve, além do ajuste global de portfólio já ocorrido, às intervenções do Banco Central no mercado de câmbio, por meio da oferta de swaps cambiais. Essa atuação reduziu uma fonte importante de volatilidade, que elevava os prêmios de risco. “À medida que as intervenções indiretas no mercado de câmbio promoveram uma certa confiança de estabilidade na trajetória, esse componente de risco caiu brutalmente.”

Do ponto de vista do Brasil e de outros emergentes, diz Canuto, os desdobramentos da desaceleração da China talvez tenham mais importância do que a redução dos estímulos monetários nos EUA. Ainda assim, ele observa que o Brasil não é um dos emergentes mais expostos a uma desaceleração da China. “Quem hoje tem que se preocupar mais com desaceleração da China pelo impacto doméstico são países como Chile, Peru, Colômbia, África do Sul, Rússia e Indonésia”, afirma.

Segundo Canuto, o impacto do que se passa na China sobre o Brasil é entre moderado e alto. É fato que o país exporta muito minério de ferro para os chineses, mas também vende muitas commodities agrícolas, cujos preços tendem a ser menos afetados por uma perda de força da economia chinesa. Para Canuto, a China já está promovendo a transição para um crescimento liderado mais pelo consumo do que pelo investimento, e deve ser capaz de evitar um colapso do sistema financeiro, apesar da forte expansão do crédito via sistema bancário paralelo (shadow banking) depois da crise de 2008 e 2009. O fato de o sistema financeiro chinês não ser muito sofisticado diferencia o país da situação que os EUA viveram há alguns anos, que culminou na quebra do Lehman Brothers.